Padrasto foi condenado na última quinta-feira (28), após júri popular, em João Pessoa. Rebeca foi estuprada e morta em 2011.
Quase oito anos depois de Rebeca Cristina, com apenas 15 anos, ter sido estuprada e morta no caminho para a escola, a adolescente ainda permanece presente em muitos detalhes entre lugares e corações por onde passou. Para o irmão Samuel, de 9 anos, Rebeca está no cheiro do edredom que ficou e já passou três vezes por conserto. Para a mãe, Tereza, o ursinho deixou o cheiro do perfume preferido da filha. Para a amiga Mykaelle, a saudade é a maior lembrança. Rebeca ficou nos momentos e no futuro que queria ter. O que não ficou foram os sonhos que ela cultivava. “Ele matou os sonhos dela”, lamentou Tereza, sem conter as lágrimas.
O corpo de Rebeca foi encontrado no dia 11 de julho de 2011. Era uma segunda-feira. Tereza esperava a filha para almoçar, como todos os dias. O relógio já marcava meio dia e o portão ainda não havia sido aberto. Naquele dia Tereza resolveu contrariar a regra diária. Almoçou sozinha.
Quando já passava de uma hora do desaparecimento, se preocupou ainda mais. Ligou para o celular da filha, mas estava desligado. Ligou para a mãe, mas ela não havia passado por lá. Na casa da tia ela também não estava. O problema chegou quando Tereza descobriu que nem na escola Rebeca havia chegado.
Ela saiu fardada, com a roupa do Colégio Militar. Não voltou mais. Parou a vida em um matagal, na praia de Jacarapé, Litoral Sul de João Pessoa, depois de ter sido raptada. O corpo foi encontrado no início daquela tarde. Rebeca usava apenas calcinha e sutiã. A farda já não era mais parte do seu corpo. Os pés, muito brancos, se destacavam, conta a mãe.
Tereza Cristina, mãe de Rebeca Cristina, com o urso que guardou – o último presente que ela deu à filha — Foto: Dani Fechine/G1
Quem reconheceu o corpo foi o cunhado de Tereza. Chegou perto. Não deu para confirmar. Após o estupro, Rebeca foi assassinada como um tiro. Caiu e ali ficou, com o braço em cima do rosto. Então ele chegou mais perto, abaixou e confirmou, naquele momento, que Rebeca não voltaria mais para almoçar. Também não chegaria mais ao colégio, onde encontraria com a amiga Mykaelle.
“Ele ainda se preocupou em colocar a calcinha e o sutiã. Que estuprador faz isso? Nenhum”.
O inquérito relata que um dos agressores deixou material genético no ânus da vítima, após o estupro. Rebeca era virgem e foi abusada sexualmente, ainda em vida e contra a sua vontade. O local onde ela foi encontrada foi o mesmo onde a morte aconteceu.
Edvaldo Soares, padrasto de Rebeca, também esteve no local. Ele foi condenado na última quinta-feira (28) a 31 anos de prisão por ter matado e participado do estupro que antecedeu o assassinato de Rebeca. Ele é cabo da Polícia Militar, mas no dia do crime, ainda era o padrasto da vítima. Foi até o corpo de Rebeca, sabia exatamente onde ficava o matagal.
Seu primeiro álibi foi quebrado ali. Testemunhas informaram à polícia que às 11h Edvaldo já havia comentado no trabalho sobre o desaparecimento de Rebeca. Tereza havia ligado para ele comunicando sobre o sumiço da filha e, por isso, precisou sair do trabalho. Mas Tereza só ligou para o marido depois de todas as tentativas terem fracassado. O relógio já passava das duas horas da tarde.
Mãe de Rebeca Cristina guarda foto da filha em um colar — Foto: Dani Fechine/G1
Marcas de Rebeca
Rebeca deixou para trás alguns sonhos. Entre eles, o de ser médica veterinária. Sabia que precisaria ficar um pouco distante da mãe, já que em João Pessoa não tem o curso. Mas era dos animais que queria cuidar e faria esse esforço. Havia prometido visitar a mãe com frequência. Mas agora, as visitas estão apenas em coração. Com Mykaelle, fazia planos de morar junto com a amiga, estudarem juntas, construírem um futuro. Quase oito anos depois, Mykaelle é casada, mãe, dona de casa. Fica tentando imaginar quem Rebeca seria se estivesse viva.
Apesar de tudo, Rebeca ficou. Os cabelos negros e a pele branca chamam a atenção nas fotos expostas na sala dos avós da adolescente, que depois do crime, entregaram a vida ao futuro. No rack, na estante, na parede. Rebeca está em todos os lugares, reproduzida em fotografias que foram tiradas um dia antes da sua morte.
No pescoço da mãe, a lembrança física. Rebeca sorri como se pedisse passagem para uma vida que não teve a oportunidade de presenciar. No cordão que Tereza carrega com a foto da filha também tem, no verso, a foto do filho Samuel, de 9 anos. Ele é uma criança com deficiência cerebral, mas sabe bem quem era a irmã.
Samuel tinha apenas 2 anos quando tudo aconteceu. Mas hoje, de vez em quando, alguém o pega falando: “homem mau, tirou a vida da minha irmã”. Dorme todas as noites com o mesmo edredom. Segundo ele, foi Rebeca que lhe deu de presente. Quem acha que ele fala sozinho, logo descobre que é com a irmã que está conversando. Se aconchega naquele lençol como se fosse um abraço fraterno. Cheira, sente o tecido, dorme. Rebeca está ali.
Edredom usado por Samuel, filho de Tereza Cristina e irmão de Rebeca — Foto: Dani Fechine/G1
No colo da mãe, o ursinho rosa – último presente dado por Tereza a Rebeca – chama atenção pelo cheiro de rosas. Com vários objetos de Rebeca guardados em caixas – para uma mudança de casa que está para acontecer – o urso foi o que ficou para Tereza chamar de “minha filha”. No enterro, ele também estava lá. No julgamento também esteve presente. É a parte de Rebeca que ficou e que consola quem entra na casa dos pais de Tereza, onde aguarda atualmente a entrega de um novo apartamento. Ela decidiu vender a casa onde Rebeca construiu tantas memórias. Não para fazer morrer as lembranças, mas para enterrar a dor.
Mykaelle lembra dos momentos que passou. Ainda guarda alguns objetos que a fazem não esquecer jamais o que Rebeca significa. “Eu guardo o tempo que passamos juntas”, revela. A semana, no aguardo para o júri popular, no qual Mykaelle foi testemunha, foi de angústia, fastio e insônia. “O que mais sinto falta é estar com ela. Eu tenho uma filha e queria muito que ela estivesse aqui. Eu casei e queria que ela estivesse lá. Eu perdi muitos amigos, porque me isolei”, desabafa.
Rebeca pelas palavras de Tereza
“Rebeca gostava muito de assistir televisão, arrumar a casa no fim de semana, era uma menina calma, gostava de shopping como toda menina jovem, quando podia ia ao cinema também. Ela nunca foi muito de praia, quando ia para praia não gostava de ficar muito exposta, ficava sempre de short. Era muito dedicada à igreja, ao louvor. Nos 15 anos dela, teve uma festinha surpresa e ela teve a oportunidade de louvar um hino junto comigo. Era uma menina muito dedicada aos estudos, não era mal criada, tudo que eu pedia ela fazia. Às vezes quando eu vinha para casa de mamãe, deixava ela dormindo, quando voltava ela já tinha colocado roupa na máquina, já tinha esquentado o almoço. No São João, ela queria porque queria fazer uma fogueira. ‘Eu vou fazer aqui dentro, no quintal’, disse a Rebeca. Foi uma festa para ela. Só em ver a alegria dela, achou bonito. Foi no São João, ela ainda estava viva. Em julho, quando voltou das férias, aconteceu isso.”
Fotos de Rebeca Cristina estão estampadas em vários locais da casa dos avós, em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1
Um homem sem princípios
Edvaldo Soares dos Santos. 50 anos. Policial militar que trabalhava no presídio do Róger na época do crime. Preso desde julho de 2016, cinco anos após o assassinato. Ele foi indiciado no mesmo ano. A polícia entendeu que ele seria o principal suspeito dos crimes de estupro e homicídio qualificado. No inquérito, 22 indícios levavam à autoria de Edvaldo na morte da jovem Rebeca. Um homem, conforme relato de testemunhas, que já tinha histórico de abuso sexual e compulsão pela masturbação. Tereza já flagrou algumas vezes Edvaldo se masturbando, até mesmo perto do filho deles.
Foi ele mesmo que solicitou uma viatura da polícia para a sua casa no dia do crime, informado que “a filha de sua esposa” havia sumido. Durante o julgamento desta quinta-feira, uma série de provas circunstanciais foram apresentadas contra Edvaldo pelo Ministério Público. No entanto, algumas deixavam dúvidas.
Júri popular de Edvaldo Soares da Silva, condenado pela morte e estupro de Rebeca Cristina, aconteceu nesta quinta-feira, 28 de fevereiro — Foto: Dani Fechine/G1
A arma do crime nunca foi encontrada. Além disso, nenhum exame comprovou que Edvaldo teria disparado o tiro. O material genético encontrado no corpo de Rebeca é de uma terceira pessoa, por isso ele foi colocado como co-autor.
Contra Edvaldo, existia uma vida pregressa cheia de complicações. Ele responde a um processo por uma tentativa de estupro que aconteceu em 2006, com uma adolescente que morava na mesma rua que ele. Essa adolescente, hoje com 25 anos, testemunhou durante o julgamento. Também respondeu a um inquérito administrativo na polícia porque estaria observando uma colega de farda trocar de roupa. A descoberta do caso extraconjugal de Edvaldo com um homem era outro agravante para o crime.
Mesmo assim, todos esses fatos não colocavam Edvaldo no local do crime. Durante o julgamento, outros fatos revelados e trechos do depoimento de Edvaldo o foram incriminando. Testemunhas e colegas que trabalhavam com ele no presídio confessaram que por volta das 11h30 ele já havia comentado sobre o desaparecimento de Rebeca. Ele também negou ter acionado a Polícia Militar, mas o promotor mostrou que existia o registro que ele ligou às 14h23 e que ele era o comunicante.
Por fim, um fato que o complicou definitivamente foi uma ligação rastreada que batia exatamente com o local do crime. A ligação foi de um telefone emprestado de um colega. Essa ligação foi feita para mãe de Rebeca, que não atendeu a ligação, mas a chamada ficou registrada. Ou seja, ele ligou para mãe de Rebeca direto do local do crime.
Edvaldo Soares, de 50 anos, no júri popular desta quinta-feira (28), em João Pessoa — Foto: Dani Fechine/G1
Depoimento no julgamento
Durante o julgamento, Edvaldo alegou que estava sendo acusado como “bode expiatório” para “dar satisfação à sociedade” e que nenhum investigador queria continuar com o caso. O réu falou ainda que tratava Rebeca como filha. “Era relação de pai e filha. Eu procurava exercer o papel de provedor do lar”, disse Edvaldo.
Vida conjugal
Após o crime, Edvaldo foi mudando o comportamento, conforme conta Tereza. Mexia nos objetos de Rebeca e era sempre questionado pela esposa, que sempre teve firmeza para não deixar que a imagem da filha fosse manchada por situações corriqueiras. “Ele infernizou minha vida”, declarou Tereza. Apesar de alguns comportamentos estranhos, ninguém suspeitava de Edvaldo como acusado do crime.
Depois que Rebeca morreu, os dois foram morar em um apartamento alugado. A casa já não fazia mais sentido. Tereza chegou a sofrer violência verbal e psicológica e precisou ser apoiada por uma equipe de psicólogos. Quando descobriu que ele era o principal acusado, pediu o divórcio. “Até então eu não tinha uma noção tão grande da participação dele”, declarou Tereza.
Advogado Wagner Veloso Martins faz parte da defesa de Edvaldo Soares da Silva, acusado de matar e estuprar a adolescente Rebeca Cristina; à esquerda, o promotor Marcus Leite — Foto: Dani Fechine/G1J
Júri Popular
O dia da quinta-feira foi de lembranças, nada agradáveis, e de um passado doentio. Com o auditório cheio, todas as cadeiras ocupadas, imprensa ocupando todos os espaços vazios, Edvaldo foi chamado pelo juiz Marcos Wiliam para dar início ao julgamento.
O momento foi de entraves, principalmente no primeiro período, quando as testemunhas do Ministério Público foram ouvidas. O juiz precisou interferir algumas vezes, relembrar o motivo daquele julgamento e, em algumas investidas do advogado de defesa para inocentar o seu cliente, o juiz foi claro: “esse julgamento vai acontecer até o fim”.
O Ministério Público acusou Edvaldo como co-autor do crime, junto a outro homem não identificado, e detalhou provas periciais e testemunhas que comprovariam que o réu matou e estuprou Rebeca por ela ter descoberto um relacionamento extraconjugal homossexual dele. A defesa do cabo Edvaldo apontou que, na verdade, o autor do crime seria um namorado de Rebeca à época dos fatos.
Tereza Cristina, mãe de Rebeca, durante o júri popular no Fórum Criminal — Foto: Dani Fechine/G1
O júri foi formado por quatro homens e três mulheres. Durante o julgamento, estavam previstos depoimentos de cinco testemunhas do Ministério Público e quatro da defesa, além do réu. Porém, duas do MP faltaram.
A mãe de Rebeca, Tereza Cristina, passou mal durante o julgamento e precisou se ausentar da sala. Ela disse que o momento era difícil e que muitas vezes não aguentava encarar o acusado. Ao fim de tudo, emocionada, enfatizou que a justiça foi feita. “Minha filha agora pode descansar. A justiça foi feita. Eu só tenho que agradecer a todos. Trinta e um anos não vão trazer minha filha de volta”, declarou após o encerramento do júri popular de Edvaldo Soares.