O relato dessa mãe é uma prova de que relacionamentos abusivos podem ocorrer em qualquer família, independente de classe social. Confira!
Maria Thereza Trad, 43, é de uma conhecida família de Campo Grande, capital do Mato Grosso do Sul. Também é mãe de cinco filhos, psicóloga e especialista em terapia familiar. Mesmo em uma situação tão privilegiada, foi mais uma vítima da violência doméstica. Leia abaixo seu depoimento:
“Eu casei muito nova, prestes a completar 19 anos. Meu primeiro marido era um homem bacana, bem estruturado, tivemos três filhos juntos. Durante esse período, estudei, me formei em psicologia, fiz pós-graduação e um mestrado. Quando completamos 16 anos de casados, com os nossos filhos já maiores e a carreira estabelecida, resolvi me separar.
Minha caçula já tinha 12 anos, eu queria viver o que não tinha vivido na adolescência, então tomei essa decisão. Na época, me sentia segura para recomeçar um história livre, sozinha. Passei a frequentar bares, sair com amigas – até então, nem sabia o que era uma balada. E foi nessa fase que conheci a pessoa que traria a violência doméstica para a minha vida.
Ele era bonito, sedutor, sete anos mais novo do que eu e me tratava como uma rainha. Foi uma paixão avassaladora para os dois, queríamos ficar juntos o tempo todo e fui me entregando tanto que engravidei com poucos meses de relacionamento. Que, aliás, nem era um namoro, nós estávamos ainda nos conhecendo.
A partir daí começou o problema. Uns 20 dias depois de eu contar que estava grávida, ele pediu para que nós passássemos a dormir juntos todos os dias. Ele era muito ciumento, então esse convite já foi meio suspeito. Parece que, depois de receber a notícia, ele passou a se sentir meu proprietário. Aceitei, mas como meus filhos moravam comigo, não quis que ele viesse para o apartamento, então ia passar a noite na casa dele.
No início, esse ciúmes até fazia bem para o meu ego, mas piorou muito na gravidez. Primeiro, foram as agressões psicológicas. Ele me ameaçava, se alguma amiga me ligava, era sempre uma amiga que não prestava. Relembrava que eu era mais velha que ele e dizia que ninguém nunca mais ia me querer porque eu já estava indo para o quarto filho. Eu tentava terminar, mas ele voltava bonzinho, dizendo que nunca faria isso de novo.
Durante toda a gestação, ele quebrou uns seis celulares meus. Toda vez que tocava o telefone e era nome de homem, mesmo que fosse um paciente meu, ele já suspeitava de traição. Seguimos assim, até que ele pediu para que meu irmão – que era prefeito da cidade na época – arrumasse um emprego para ele. Só que ele já tinha dito para mim que queria uma vaga pública “fantasma”, sem receber por isso. Alertei meu irmão, que negou o emprego.
Quando o meu ex-companheiro ficou sabendo disso, ficou enfurecido. Eu estava na 36ª semana de gravidez, passando de carro por uma rua quando ele me parou, entrou no meu carro e disse que iria comigo até meu apartamento. Disse que tinha descoberto sobre minha conversa com meu irmão e que agora eu iria apanhar.
Foi a nossa primeira briga feia de verdade. Ele quebrou o espelho, me jogou na cama, deu socos na minha barriga. Parecia uma cena saída de um filme de terror. Não acreditava que um homem fosse capaz disso. Percebi que não poderia ficar com ele, que ele poderia me matar. Depois que ele foi embora, eu entrei em trabalho de parto.
Assim, nasceu meu quarto filho – nosso primeiro -, o Theo, em 2010. A gravidez já havia sido muito complicada, cheia de medos e desamparo. Mas, apesar de tudo, ele nasceu saudável e foi nesse momento que decidi fazer o primeiro boletim de ocorrência contra o pai dele. Fui recém-operada à delegacia, registrei o B.O. e obtive a medida protetiva. Ele chegou a ir à maternidade conhecer o filho, mas não registrou a criança e, depois disso, sumiu por cerca de quatro meses. Até que a mãe dele foi à minha casa.
Lá, ela conheceu o neto, pediu desculpas pelo que tinha acontecido, disse que o filho era bom e me convenceu a dar mais uma chance para ele. Aceitei que ele fosse visitar o Theo, ele foi à minha casa e foi aquele chororô. Ele disse que queria ficar comigo, criar a criança, fazer uma família, com uma condição: que eu retirasse a medida protetiva. Fragilizada e sensível, concordei mais uma vez.
Por ser advogado, ele mesmo escreveu o pedido para a retirada, me fez assinar e protocolou o documento no fórum. Foi incrível, pois assim que ele voltou, já estava transformado de novo. Meu telefone tocou, era um homem qualquer. Ele me pegou pelo pescoço, me empurrou contra a parede e bateu com a minha cabeça três vezes. E eu com nosso filho, de apenas quatro meses, no colo. Minha cabeça abriu, passei muito mal. Ele gritava que ia me matar, eu caí no chão.
Logo quando caí, ele se ajoelhou dizendo que me amava, que não iria mais fazer aquilo. Eu não estava nem entendendo direito, tonta com as pancadas, só me lembro dele falando e chorando sem parar. Por medo de que eu pedisse mais uma vez a medida protetiva, ele não saiu da minha casa depois disso. Ficou uma semana lá, pedindo roupas para a mãe.
Quando ele finalmente saiu, esperei uns dias e fui ao médico, fiz exames e mais um boletim de ocorrência. Consegui outra vez a medida protetiva e aí ele sumiu por um bom tempo. Três anos depois, em 2013, entrou com um pedido de direito de visita e reconhecimento de paternidade. Nos reencontramos e o discurso foi o mesmo, de que havia mudado, estava bem. Reatamos o relacionamento, ele parecia supertranquilo, até que engravidei mais uma vez.
E aconteceu a mesma história de novo! Quando ele ficou sabendo, percebi que tinha mudado, ficou agressivo. Mas eu já tinha aprendido a lição, sabia que aquilo não melhoraria nunca. Ainda mais porque, nesse período, ele tinha mais um ‘motivo’ para ter ciúmes.
Entre 2011 e 2013, fiz algumas fotos sensuais. Primeiro, pela minha autoestima, mas a coisa cresceu e fui convidada para posar em duas revistas masculinas, entre elas a Playboy. Quando ele voltou, na verdade, estava até entusiasmado com isso, dizendo que tinha uma mulher linda, mas no fundo ele não suportava. Então, em mais um episódio em que ele disse que quebraria meu celular, eu pedi para que ele fosse embora. Sabia que algo ruim poderia acontecer. Ele foi, mas falou que voltaria.
Dito e feito. No dia seguinte, 23 de dezembro de 2013, eu saí para fazer compras de Natal e, quando cheguei em casa, notei que meu celular não estava comigo. Procurei em todos os lugares, até que ele entrou pela porta da área de serviço do meu apartamento, que sempre ficava aberta, e foi até o banheiro, onde eu estava, segurando meu celular na mão. Foi aí que aconteceu o pior de todos os episódios.
Ele quebrou o aparelho na minha cabeça, que começou na hora a sangrar, e me pegou no colo como se eu fosse um bebê, me jogou no chão. Minha filha, que na época tinha 16 anos, interferiu e conseguimos empurrá-lo para fora da casa. Trancamos a porta, mas ele a arrombou com um chute. Meu filho de três anos assistiu tudo, chorava e gritava. Estávamos desesperados, gritávamos pedindo socorro pela janela.
Na hora em que ele fez um movimento em direção às costas, como se fosse pegar uma arma, me jogou no chão com a outra mão. Eu já enfraquecida e sangrando, ele olhou para os meus filhos e falou que agora eles veriam a mãe morrer. Neste momento, a polícia chegou. Ele automaticamente fingiu que estava tudo bem, disse que não havia motivo para eles estarem ali, que se tratava apenas de uma briga de casal. Só que estávamos todos transtornados, meu filho chorando. Estava claro que não era algo normal, então ele saiu preso do apartamento.
Assim que eu e minha filha chegamos à delegacia, muito assustadas, o pai dele veio até mim, me olhou e disse que eu havia acabado com a vida do filho dele. A mãe dele gritava que tudo aquilo tinha sido armação. Imaginem! Eu toda machucada, minha filha também e meu filho atordoado! Eu poderia ter perdido o meu bebê…
Os pais, que também têm boas condições financeiras, interviram e, assim, ele não passou um dia sequer na cadeia. Pagaram fiança e conseguiram soltá-lo. Depois, ele foi processado, julgado e condenado a três anos e meio de prisão em regime semiaberto, mas não cumpriu a pena até agora porque eles vivem recorrendo. O processo, pelo que sei, está hoje no Supremo.
Tarik, nosso segundo filho, nasceu em 2014. Como tudo ocorreu desta vez no início da gestação, fiz questão que fosse diferente da gravidez do Theo, mais tranquila e celebrada.
Recentemente, ele conheceu o Tarik, agora com 3 anos de idade. Na ocasião, ele o registrou e voltou a visitar os filhos. Não nos vemos nem nos falamos, ele só passa os sábados com as crianças. O Tarik não sabe de nada, porque tudo ocorreu quando eu estava bem no início da gestação dele. Mas o Theo sofreu as consequências dessas agressões todas e hoje é supersensível, faz psicoterapia, chora mais do que as outras crianças e tem medo do pai. Todos temos a simbologia do pai herói, mas ele percebeu desde cedo que o dele não era nada disso – pelo contrário. Eu sempre digo que quem bate em mulher machuca a família inteira.
Depois que tudo aconteceu, meus dois irmãos, que além de políticos são advogados, pediram para que eu não contasse aquilo nunca para ninguém. E eu ficava com aquilo na cabeça, questionava. Afinal de contas, tratava-se de uma parte importante da minha vida. Até que um dia comentei em um post do Facebook de uma amiga sobre violência doméstica, dizendo que já tinha passado por aquilo. Uma repórter do Campo Grande News, site local, viu o comentário e me pediu uma entrevista.
Eu concedi e foi uma loucura. Recebi muitas mensagens de apoio, pedidos de ajuda, mulheres na mesma situação me agradecendo por compartilhar esse relato, que mostra que a violência pode ocorrer em qualquer classe social. Incentivou algumas mulheres a denunciarem seus agressores, enquanto a família estava de mal comigo por ter resolvido falar.
Hoje, trabalhando com mulheres vítimas de violência doméstica, vejo que o perfil do agressor é sempre muito parecido. Ele pede desculpa, diz que vai melhorar, mas o comportamento segue o mesmo. É muito difícil sair do ciclo de um relacionamento abusivo, porque ele faz com que a mulher se sinta cada vez mais dependente dele e isolada do resto do mundo.
Agora, é muito difícil que eu me relacione com alguém, porque tudo que eu imaginava que existiria em um relacionamento verdadeiro foi tirado de mim. Tenho medo de confiar de novo e não ser aquilo que espero. Ser mãe solteira não é fácil, você carrega responsabilidade dupla. Contudo, reagi de forma ativa a toda esta situação, buscando transmutar dor em encorajamento, mudança e esperança para quem se encontra num contexto semelhante.
Poderia viver de forma mais anônima, cuidando apenas dos meus próprios interesses, mas compartilhei a minha dolorosa história de vida e expus minha vulnerabilidade num relacionamento sofrido e difícil. Agora ajudo mulheres que passam por situações parecidas, porque sei como é difícil sair de um relacionamento assim. E isso porque eu tinha estrutura, boa situação financeira. Agora imagina as que não têm nada disso?”.
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